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ESTUDO PIONEIRO

Por Émerson Rodrigues

Em novembro de 2011, enquanto lia uma reportagem do Jornal do Commércio de Pernambuco, que mostrava que apenas 1% do couro de tilápia no Brasil é aproveitado - à época no artesanato (confecção de bolsas, cintos e sapatos)-, o cirurgião plástico pernambucano Marcelo Borges se fez uma pergunta: se a pele da tilápia tem, ao mesmo tempo, resistência e delicadeza para ser empregada no artesanato, por que não utilizá-la também no tratamento de queimaduras?

 

Empolgado com a ideia, Marcelo começou uma peregrinação à procura de empresas que pudessem viabilizar a pesquisa em Pernambuco. Devido a falta de investimentos e de uma equipe de pesquisadores para desenvolver o projeto em seu estado, ele viu surgir uma nova possibilidade quando um amigo de longa data, o também cirurgião plástico Edmar Maciel, presidente do Instituto de Apoio de Queimado (IAQ), soube de sua ideia e convidou Marcelo para realizar o estudo no Ceará, em setembro de 2014.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Trabalhando desde 2001 com pesquisas na área de queimaduras, Edmar começou a formar a equipe para dar início ao projeto assim que recebeu o sim de Marcelo. O primeiro nome na lista foi o do pesquisador e médico cearense Odorico de Morais, professor de Edmar na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em novembro de 2014, Odorico soube da ideia ambiciosa do seu ex-aluno e do cirurgião plástico pernambucano sonhador: estudar a pele da tilápia e registrar o produto junto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Movido por desafios, Odorico abraçou a ideia de Edmar e Marcelo e se juntou aos dois na empreitada.

 

O presidente do IAQ, porém, não havia convidado Odorico apenas pela admiração dos tempos de faculdade, mas porque seu professor estava à frente do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da Universidade Federal do Ceará (UFC), que seria inaugurado posteriormente, em 2 de fevereiro de 2015, após dez anos de planejamento. O espaço reúne uma equipe multidisciplinar de pesquisadores de áreas com interesse comum, visando atuar na pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos, como o próprio nome diz.      

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antes da inauguração do NPDM e do início da pesquisa propriamente dito, Marcelo, Edmar e Odorico teriam um último grande teste: conseguir um financiador para o estudo pioneiro. Em dezembro de 2014, os três apresentaram a ideia de se estudar a pele da tilápia à diretoria da antiga Companhia de Energia Elétrica do Ceará (Coelce), atualmente Enel. A distribuidora de energia elétrica já era velha conhecida do doutor Edmar Maciel, tendo, inclusive, firmado convênios de pesquisa com o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), do qual Edmar era presidente.

 

Buscando um retorno social, já que os choques elétricos estão entre as principais causas de queimaduras, os diretores da antiga Coelce se mostraram empolgados com o projeto dos médicos e, em fevereiro de 2015, assinaram o convênio para financiar a pesquisa com a pele da tilápia com duração até julho de 2018. Um mês depois, a fase pré-clínica da pesquisa começava.

 

A FASE PRÉ-CLÍNICA

 

Após a assinatura do convênio, os pesquisadores do recém-inaugurado NPDM elaboraram um cronograma de estudos pré-clínicos e clínicos, visando registrar a pele da tilápia junto a Anvisa na categoria de curativo biológico. Em março de 2015, quando se iniciou a fase pré-clínica, a equipe encarregada de estudar a pele da tilápia já era composta por 65 colaboradores.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Em um primeiro momento, Marcelo, Edmar e Odorico sentiram necessidade de conhecer de perto a piscicultura no Açude Castanhão, em Jaguaribara, no Interior do Ceará, distante 221 quilômetros de Fortaleza. No açude é onde são criadas as tilápias das quais se retiram a pele para a utilização na pesquisa. O peixe chegou ao Brasil em 1956, e hoje é um dos mais produzidos e consumidos no Brasil. Com o estudo encabeçado pelos três pesquisadores, a pele da tilápia também se tornou a primeira pele aquática do mundo estudada para uso em queimaduras e feridas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Já na etapa dos tecidos da pele da tilápia, um resultado serviu de base para a utilização da pele da tilápia como curativo biológico. Os pesquisadores observaram que a pele da tilápia apresenta boa quantidade de colágeno do Tipo 1, proteína responsável por dar firmeza e elasticidade à pele, boa resistência à tração e boa umidade, semelhantes à pele humana e melhor que as peles de porco e de rã, utilizadas no tratamento de queimaduras em países europeus e nos Estados Unidos.

 

Na aplicação da pele da tilápia em ratos, outra surpresa: constatou-se uma boa aderência da pele a ferida e melhora no processo de cicatrização. Por fim, após as etapas de esterilização da pele da tilápia e exposição a radiação demonstrou-se ausência de bactérias e fungos, sem alterações na estrutura da pele e de seus elementos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em dezembro de 2015, logo após o fim desta etapa, os resultados da pesquisa promissora foram apresentados a Anvisa. Após a aprovação do comitê de ética da entidade, a agência reguladora então orientou a realização de estudos de alergia e sensibilidade em humanos sadios. Era o início da fase clínica 1.

AS FASES CLÍNICAS

 

Na fase clínica 1, realizada em Campinas e iniciada em abril de 2016, foi comprovada a eficácia da pele da tilápia em humanos sadios, o que levou os pesquisadores a iniciar a fase clínica 2, com o uso da pele da tilápia em pacientes queimados. 

 

A etapa, iniciada em julho de 2016, ocorreu no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) do Instituto Doutor José Frota (IJF), hospital público de Fortaleza e referência na região Nordeste no tratamento de queimaduras. Na fase clínica 2, 60 pacientes com queimaduras de segundo grau profundo e superficial, tanto em tratamento ambulatorial, quanto internados foram escolhidos para participar da pesquisa.

 

Dentre eles, está o supervisor de manutenção Josué Bezerra, um dos primeiros pacientes a serem tratados com o curativo biológico. Josué, vítima de um acidente no trabalho, sofreu queimaduras de segundo grau profundo e deveria passar dois meses internado no IJF. Com o tratamento inovador, seu tempo de recuperação foi reduzido para 21 dias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mas não foi só Josué que viu seu tempo de recuperação diminuir. Os estudos clínicos se mostraram animadores, já que a pele da tilápia teve uma ótima aderência a ferida, evitando infecções, perda de líquidos, além de não ser necessária sua remoção até a completa cicatrização das queimaduras de segundo grau superficial, como ocorre no tratamento com sulfadiazina de prata, pomada disponibilizada pelo serviço público de saúde para o tratamento de queimaduras.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nas queimaduras de segundo grau superficial, com a pele da tilápia há uma redução de um dia no tempo de cicatrização, passando de 10 a 11 dias para 9 dias. Já nas queimaduras de segundo grau profundo, a redução média foi de dois dias e meio no tempo de cicatrização, estimado de 19 a 21 dias no tratamento convencional. Os custos com o tratamento com a pele da tilápia é, em média, 57,48% mais baixo do que o que utiliza a sulfadiazina de prata.

 

Desde abril de 2017, a pesquisa com a pele da tilápia encontra-se na fase clínica 3, também no IJF. A terceira fase é o último estágio para a pele da tilápia ser registrada na Anvisa, na categoria de curativo biológico. Na fase clínica 3, 150 pacientes vítimas de queimaduras de segundo grau superficial, com idade entre 2 e 70 anos, foram tratados com o curativo biológico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A CARÊNCIA DOS BANCOS DE PELE

Apesar da pesquisa promissora com a pele da tilápia, a forma mais adequada de recuperação das queimaduras de segundo e terceiro grau é com o transplante de pele humana, que é mais vantajoso para os pacientes por prevenir contra o ressecamento da ferida e infecções, além de reduzir a dor na região lesionada e cicatrizar rapidamente.

 

No entanto, o Brasil está bem atrasado nesse assunto. Segundo o Ministério da Saúde, o País deveria possuir treze bancos de pele humana, mas hoje conta com apenas quatro, nas cidades de Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro, número considerado insuficiente.

 

 

 

A falta de campanhas de doação, os altos custos para captação e processamento de pele aliados a falta de investimentos por parte do Governo Federal contribuem para essa realidade. A questão cultural também é apontada como um dos fatores responsáveis pelo baixo índice de doação de pele, já que a população brasileira não está acostumada a doar pele, maior órgão do corpo humano, como doam outros, caso de coração, fígado, rim, entre outros.

 

Devido a falta de bancos de pele humana nas regiões Norte e Nordeste, foi inaugurado em agosto de 2017, o primeiro banco de pele animal do Brasil. Localizado no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos, o banco de pele da tilápia conta com uma equipe multidisciplinar de 70 profissionais e é coordenado pelos médicos Odorico de Morais e Edmar Maciel e pela enfermeira Cybelle Leontsinis.

 

Com o banco de pele, a pesquisa com o couro da tilápia ultrapassou as fronteiras do estado e já está sendo aplicada em vítimas de queimaduras nos estados de Pernambuco, São Paulo, Paraná e Goiás, além de ter ganhado o mundo, com estudos parceiros em universidades na Colômbia e nos Estados Unidos. A expectativa agora é que a pele da tilápia seja registrada junto a Anvisa, o que deve acontecer até o fim deste ano, para que, finalmente, possa ser liberada sua comercialização como curativo biológico no tratamento de queimaduras e feridas.

Odorico de Morais - Coordenador do NPDM
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Edmar Maciel - Cirurgião plástico
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Edmar Maciel - Cirurgião plástico
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Marcelo Borges - Cirurgião plástico
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Edmar Maciel - Cirurgião plástico
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